"Eu sei, mas não devia" texto de Marina Colasanti!
Eu
sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em
apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E,
porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não
olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não
abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que
se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. A gente se
acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café
correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder
o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do
trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar
cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a esperar o dia
inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem
receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A
gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar
para ganhar o dinheiro com que pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E
a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais
dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra. A gente se acostuma
a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a
televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser
instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro
de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na
luz natural. Às bactérias da água potável. A gente se acostuma a coisas demais,
para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma
dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se a praia está contaminada,
a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o cinema está cheio, a
gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se o trabalho está
duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não
há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem
sempre sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para
preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o
peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que,
gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Belo
texto de Marina Colasanti!
E
você, está acostumado??